Encontrar Robin Hobb foi obra do destino. Ela carrega em suas mãos a magia de transformar o tradicional em algo que arranca o fôlego. Navios-vivos? Com personalidade, capacidade de aprendizagem e a memória acumulada de gerações de capitães. Essa escritora e suas histórias subiram ao topo dos meus favoritos e se tornaram a referência quando o assunto é literatura fantástica.
No berço de uma sociedade de mercadores, a vida conhecida estava prestes a mudar de forma drástica. Criados substituídos por escravos e rotas marítimas seguras dominadas por piratas que são “coroados” salvadores dos novos tempos.
A economia dominada por homens precisa dobrar o orgulho para que as mulheres possam mostrar que são tão capazes – ou melhores – que seus maridos, pais e irmãos.
Representatividade feminina, um critério escasso dentro dos livros de fantasia, piora quando os escritores são homens, com raríssimas exceções para os que tentam. Dá para notar como Robin Hobb simplesmente me encantou.
Kennit: vivendo a história pelos olhos do personagem
Venho tomando gosto por visões de personagens improváveis, longe da esféra heroica e protagonista. Kenit é um desses. Um pirata famoso cujo desejo de governar seus iguais e derrubar o governo tradicional mercante, que prioriza famílias específicas há anos no domínio do comércio, únicas permitidas gozar dos direitos e deveres das leis oficiais.
Kenit não é o bonzinho com causa nobre que almeja justiça para os piratas. Suas ambições se expandem até os navios-vivos. Com um desses ele poderia ser um mercador arcano e com seu conhecimento desbravaria o mundo ao domínio e riqueza.
Costumo dizer que ele tem instintos de alguém excluído por uma sociedade desigual, mas suas intenções revelam o pirata impregnado em seu espírito, cuja dissolução não existe, por mais que as eventualidades o transformem em uma espécie de Robin Hood, queira ele ou não.
Kennit foi um misto de ódio e empatia a cada parágrafo, por sua arrogância crítica e pela lábia argumentativa a cada cena. Kennit prova a veracidade das lendas, experimenta da magia ao seu mais alto nível. Ele testemunha o que depois será escrito nos livros, deixados para os sábios estudarem e concluírem a motivação por trás de tais eventos.
Através dos olhos azuis desse pirata, vivenciei a implementação da escravidão. Estava ao lado daquelas pessoas, acorrentadas feito animais, no porão dos navios, rogando pela morte para alcançar a liberdade.
É surpreendente como o ser humano deixa de enxergar o outro como um igual quando a marca da servidão é tatuada no rosto do escravizado. Não importa se somos todos da mesma espécie, o foco está na economia de comprar alguém para trabalhar ao invés de estabelecer salários mensais; não importa a precariedade, a humilhação, a maldade.
“Que futuro aquelas pessoas teriam por lá? Kennit respondeu que teriam um futuro melhor do que aquele que os traficantes tinham oferecido.”
A similaridade com aspectos da história feudal e medieval me aproximaram do enredo. Transições do modelo comercial, a escravidão, o aumento da desigualdade social, as pressões políticas, o desmonte do tradicionalismo econômico, a tensão crescente de uma crise preocupante prestes a estourar.
Somado, a magia ancestral cobrando a promessa de quem assinou seus contratos com sangue…
Ambientação e algumas personagens marcantes no livro
Vilamonte é o ambiente principal dos acontecimentos, é a cidade mercante mais tradicional e onde a maioria dos personagens vivem, ou passam por. Nela estão acontecendo mudanças na política e na economia, que afetam as famílias tradicionais; uma delas é a chegada das pessoas escravizadas e a diminuição das funções da mulher no mercado como um todo. Apresentando justamente a transição de uma espécie de igualdade para o patriarcado, vivido mais sofridamente por Ronica Vestrit, esposa de Ephron Vestrit, um mercador dono do navio-vivo Vivácia, que ainda não despertou.
Ronica é uma mulher muito forte, determinada, de personalidade firme e com a responsabilidade de gerir os negócios da família enquanto seu marido viaja para comprar e vender mercadorias. Com a pena afiada para os números, Ronica se vê em crise quando Ephron cai doente e Vivácia passa a ser comandado pelo genro, Killy Porto, casado com a filha mais velha de Ronica, Kreffa Vestrit,
Killy veio de uma cidade escravista, não entende os costumes da família Vestrit e aproveita a ausência do sogro para instituir suas leis. Ignorante demais para perceber as nuances que fazem o Vivácia ser único e quem ela escolheu para a guiar. Podemos reumir Killy como um patife de primeira [para não usar palavras mais chulas], me perguntei diversas vezes como Ronica deixou a Kraffa casar-se com ele e como a própria Kraffa se apaixonou por alguém tão rude. Penso que talvez fosse, das opções, o menos pior ou apenas o desespero de estabelecer o padrão matrimonial antes que ficasse velha demais para tal.
“O sol estava acabando de nascer, e aquela parte da cidade ainda dormia. Talvez os moradores daquela área não tivessem muitos motivos para achar que valia a pena despertar.”
Então, vamos para a melhor: Althea Vestrit, filha mais nova de Ronica. Que força é essa? Que magia esconde para me apaixonar assim?
Althea simplesmente me arrematou desde a primeira linha. Sua força de ser, de impor suas vontades, conversa com a guerreira rebelde dentro de mim. Ela me lembrou a Asta Greyjoy da saga de livros As Crônicas de Gelo e Fogo. Viveu ao lado do pai no convés, o navio é para ela como qualquer vestido bonito é para sua irmã mais velha. Vela, nós, cordas, leme, correntezas, ventos, o mar e a enorme embarcação na qual viaja é seu lar, não haveria outro lugar melhor para ela.
Althea esperava substutir seu pai quando o dia chegasse, mas Ephron tinha planos diferentes para a filha, os quais se foram com ele para o túmulo. Desesperada, Althea simplesmente dá um jeito de estar onde quer, mesmo que para isso precise esquecer sua família rica e influente para se tornar um marujo qualquer aprendendo o pior no trabalho em alto-mar.
Althea também mostra aspectos de seu passado que a fazem tão diferente das demais garotas de mesma idade. Sempre teve o coração no mar e nos negócios da família, sua vida era o Vivácia. Mas antes de acompanhar o pai, a mente da garotinha era povoada de aventuras marinhas. Althea vive nas ondas salgadas, quer sua mãe ache correto ou não. Ela mostra como a vivência infantil a transformou, como era quando seu pai voltava para casa e simplesmente ordenava que ela e a irmã ficassem em seus devidos quartos e não o incomodassem quando estivesse com a mãe. Essa cena nunca mais saiu da minha cabeça.
A maternidade é um misto de beleza e repulsa para mim, pensar que deixarei de ser quem sou para ser a mãe de alguém me carrega para bem longe da reprodução humana. Luto demais para ser quem sou, perder tudo pelo simples fato de uma criança ter nascido é inconcebível.
No entanto, acredito fortemente que a culpa dessa ideia de morte da mulher ao nascer a mãe é muito social. Mais uma forma de tortura para mulheres, para que nunca sejamos suficientes, nunca sejamos felizes e consumamos os medicamentos e tratamentos que as industrias vendem.
Essa visão da pequena Althea, que não quis aceitar o limite de não entrar no quarto dos pais quando eles estivessem lá e a porta estivesse fechada, precisando lidar com a frustração do não, me fez refletir o quanto simplesmente deixamos de ser ou agir por nossa própria liberdade só pelo fato de não confirmar o padrão social imposto.
Althea compreendeu a razão por trás do tempo que seus pais exigiam um para o outro, o resultado era um relacionamento parental sólido, feliz, com tempo de qualidade. Assim como ela tinha sua mãe e seu pai para ela com qualidade, não apenas uma alimentação contínua de atenção compulsiva. “Porque a mãe precisa sanar as necessidades das crianças”. Ronica não concorda com isso, tão pouco Althea adquiriu traumas ou foi infeliz. Pelo contrário, ela se recorda de cada aspecto com nostalgia, compreendendo as razões por trás das ações dos pais.
Foi impossível ignorar essa passagem, porque meus pais fizeram isso comigo e eu nunca me senti abandonada por causa dos limites.
“Moral da história” – o que aprendi com O navio arcano
Estudar escrita criativa treinou meus olhos para enxergarem por trás da obra. Quais as técnicas que esse autor usou? Quais são os ápices? Quais os pontos de viradas? Por muito tempo foquei nas ferramentas para a criação do enredo e não no enredo.
O Navio Arcano me ensinou que sem coração e profundidade emocional não existe história. Pode haver milhares de livros publicados com técnica, mas os que marcam de verdade possuem uma espécie de feitiço emocional que nem o próprio autor consegue explicar; apenas sentimos.
Esse livro me levou para dentro da minha alma ao entrar na alma das personagens, na sua vida cotidiana, nas dores banais, nas preocupações com as contas do mês. Longe de querer ler uma crônica, porém, ser tão profundamente daquele mundo é ter momentos de “nada”, de rotina pura na qual as camadas de cada personagem são mostradas.
“Era espantoso o que o corpo podia fazer mesmo quando a mente estava entorpecida pela exaustão e pelo medo.”
Vivenciar o dia a dia desse livro conferiu mais realismo ao enredo, as histórias. Pode parecer monótono gostar de ler rotina, mas estamos falando de pessoas que vivem com navios falantes e magia. Quem acha isso entediante?
O Navio Arcano se tornou um dos livros de cabeceira que recorro quando a inspiração está baixa e quero viver uma aventura avassaladora. Tenho um carinho especial por sua história e não consigo me desvencilhar de seu mundo quando dele recordo.
Qual livro te vem à mente quando a palavra magia é mencionada?
Beijos de Fogo.