Quem sou eu? Quem é você?
Um sonho, um objetivo, uma característica marcante, uma mania habitual, um ritual diário, um filme, uma obra literária, uma música, um cantor, um lugar, um momento, uma cor.
Quais adereços mundanos recorremos para tentar decifrar as nuances de nossos corações?
Ultimamente, enfrento um dilema – que mais parece uma crise existencial – quanto quem é a Gabriela; a escritora, a cientista, a profissional, a filha, a esposa, a amiga, a neta, a irmã, a mulher. Quem é essa alma que reencarnou em meu corpo e resolveu seguir uma trilha árdua de inseguranças ao longo desses 30 anos?
Sinceramente: não sei. E sinto que me esvaio, gradativamente, enquanto fujo dos grandes fantasmas do passado para não demonstrar a fragilidade impregnada do meu ser.
E quem verdadeiramente sabe quem é?
Pode ser a pergunta mais valiosa da atualidade, nesse mundo cheio de padrões despadronizados, repletos de discursos libertadores adornados de correntes. Ser quem somos, apenas ser. Parece fácil quando colocamos em uma frase, tão simples quanto respirar; inerente, irreverente. Mas o que acontece é totalmente diferente.
Estou soando uma coach da internet, mas a verdade é que quero falar de Queer Eye e dos 5 fabulosos.
Queer Eye: série tipo reality show LGBTQIA+
Um reality show no qual 5 homens LGBTQIA+ têm uma semana para mudar totalmente a vida de alguém e resgatá-la dos confins cavernosos sombrios de suas próprias mentes.
Comecei a ver esse programa despretensiosamente, buscando qualquer coisinha leve para curar a ressaca de Vox Machina.
Fui assistindo enquanto fazia outras coisas, por vezes ligando a TV por ligar, fingindo que não prestava atenção nas histórias carregadas dos indicados aos cuidados dos fabulosos.
Então, episódio por episódio, fui me identificando. Fosse pelo desleixo comigo – em cuidar da minha saúde mental –, o quanto tal descuido reflete no meu lar e em como vejo a vida, nas relações ruins que mantenho sem conseguir dizer “não”, nos comportamentos tóxicos que vinha alimentando em mim e como atingia quem mais amo e, principalmente, no jeito depreciativo e inseguro com o qual resolvo me tratar.
Então, do reality passei a seguir os fabulosos, mais especificamente o Jhonathan e acompanhar suas postagens esporádicas carregadas de incentivos sobre nos amarmos como somos, a empinar a cabeça e ser quem é, com orgulho, com bravura.
Os ensinamentos entraram na minha cabeça? Claro que não, óbvio que simplesmente tratei como entretenimento e continuei repetindo os mesmos comportamentos, vivendo os mesmos ciclos e me atolando com as mesmas emoções deprimentes de sempre.
Esse não é um testemunho de superação onde conto como venci os meus pesadelos e te motivo a fazer o mesmo, mas uma reflexão profunda – assim espero – quanto a essa briga que travamos conosco ao esconder quem somos; independente do motivo.
Ressalto, claro, o problema de insegurança que adquiri com a escrita, transformando a coisa que mais amo fazer na vida em um estressor potente, desses que mata aos poucos, sem deixar rastros.
Sim, eu me mato a cada vez que abro um documento como este e me preocupo mais se o português vai estar correto e agradável do que em colocar o que estou sentindo e pensando aqui. Quando me julgo da pior maneira possível ao criar um cenário de crítica hipotético, de rejeição, de abandono e, claro, de expectativas frustradas.
Parece tolice quando estruturo em texto e me atento ao que se passa na minha cabeça na hora de escrever qualquer uma das minhas histórias. À medida que escrevo sinto o peso dissolver e a sensação de: “sério que eu estava pensando nisso?” cresce, me estapeia e retorna para o seu esconderijo silencioso, esperando a próxima vez de atacar.
Costumo colocar em dúvida se a ideia que acabou de surgir é melhor ou pior do que a de um terceiro, cuja existência mal sei e pouco pertence ao meu convívio. Sim, eu crio inimigos para mim mesma e nem me dou ao trabalho de incrementar minhas forças tais quais as guerreiras que escrevo. Nota dez, em?!
Então, eu vejo pessoas como as destacadas no Queer Eye se superarem por simplesmente aceitarem suas dores, suas linhas tortas e se deixarem apoiar, ser carregados, ter ajuda; coisa que pouco busco ou aceito de verdade.
Vejo pessoas que perderam a família inteira, os amores da vida, que moraram nas ruas, foram expulsos de casa, sofreram abuso em diversos níveis e, simplesmente, se recusam a deixar de ser quem são.
Fico buscando a exata chave, o exato momento, em que me desconecto de mim e permito pensamentos intrusos transformarem as paixões pelas quais lutei e vivo em lâminas afiadíssimas para me fatiar, lentamente.
A verdade é que não existe caminho confortável para abandonar essa carcaça dolorida que aprendemos a vestir. Não tem uma cura, existe uma aprendizagem eterna quanto a negar o que faz mal e validar o que faz bem; para além do material e, principalmente, por causa dele.
É ruim admitir que sou controladora, que não sei lidar com o que foge do meu domínio, que quero ter absoluta certeza das coisas antes de agir. Gosto de me imaginar como uma aventureira desapegada, mas essa aí é a Laverne, ou a Bannery, ou Kazumi ou Luckarty (esses vocês vão conhecer logo mais). Eu sou mais enraizada em crenças limitantes que deixaram ervas-daninhas por todos os lados e eu, como boa bióloga, tenho tentado exterminá-las com predadores naturais e as relações de nicho demandam tempo.
Aqui, sentada na cama, depois de entregar uma jornada de trabalhos acadêmicos e perceber que estou cansada demais para revisar meu livro, noto também que esse espaço de escrita, de ser escritora, não só é publicar horrores de exemplares e tentar ser uma trend de redes sociais.
Às vezes escrever é simplesmente construir um texto como esse, enquanto sentimentos os quais não sei lidar de outra forma, se materializam para que possa compreendê-los em sua totalidade.
A palavra para mim é como as asas de um pássaro, apenas com elas consigo voar. Não posso me esquecer disso.
Os 5 fabulosos fazem isso com seus escolhidos para cuidar por uma semana. Eles mostram como se cuidar vai além do que a industria e a sociedade impõe, trazem o orgulho de si à tona, começando por cuidados básicos e simples, como lavar o rosto de manhã, lavar o cabelo com cuidado, fazer um exercício físico, aprender a cozinhar receitas saudáveis, a organizar o lar de forma acolhedora e com a personalidade de quem ali mora.
É uma espécie de super banho de loja, mas com o acréscimo de cuidado com a saúde mental e a saúde profissional, reforçando o quanto somos especiais e merecedores apenas por sermos nós mesmos.
Recorro com frequência a essa série para me lembrar que eu mereço me cuidar, que eu devo fazê-lo por mim, apenas por mim. A escrita é parte do autocuidado. Eliminar a toxicidade com a qual tratei a escritora que habita meu corpo e as obras que ela produz. Nem ela e nem essas personagens merecem o tipo de conduta que assumia.
Indico fortemente os 5 fabulosos. É bom se sentir acolhido e representado em realytis de transformação, sem o foco doentio nos padrões estéticos e sociais. Simplesmente, assistam Queer Eye!
Beijos de Fogo.