Ser Alguém

Em qual cemitério abandonado minha alma se enterrou?

Ser Alguém
Ser Alguém (Fonte: Pexels.com)

Sentada diante dessa tela opressiva, com o peito comprimindo em ardor pungente, tento calar a confusão de pensamentos que minha cabeça resolve disparar, feito uma arma automática de um exército de extermínio.

Vejo-me nesse recinto, nessa casa a qual fiz meu lar, e penso nos adereços ao redor; nas paredes, nos objetos que a preenchem, nas inúmeras faltas, no clima lá fora, nas tarefas domésticas deixadas por fazer. Penso em mim, na pessoa do passado que pintou esse futuro como liberdade de uma rotina claustrofóbica e tento comparar a realidade com os sonhos dessa jovem, que acreditava no que fosse para simplesmente transformar os agouros rotineiros em sorrisos de dias frescos de primavera.

Essa felicidade inalcançável cuja existência é imposta aperta minha garganta a cada punhalada ferrenha dos inúmeros aspectos tristes e vazios que rodeiam a minha existência. Sou feliz? Não sei. Quem realmente é feliz hoje em dia? Quem realmente consegue se dizer feliz diante de tanta desesperança?

Creio que esse texto tenha traços de uma tristeza que não consegui dissolver ou afundar nos inúmeros baús do “penso nisso depois”, mesmo usando todas as estratégias terapêuticas. Não sei direito o que vim fazer nessa imensidão branca, na qual tento espremer ideias que nem sei mais se valem a pena mantê-las e duvido demais se são boas o bastante para apresentar.

Linha por linha suspiro amarguras que tem origens diversas e nem sempre se originam de algo. Só existem na totalidade de ser, apenas por acúmulos de frustração e desesperanças, que todos tentam esconder e pintar com o pincel da resiliência, mas que no fundo sentem tão profundo quanto eu as mesmas ânsias.

Para onde vamos depois daqui?

O flerte com a morte parece certo quando se julga a própria história como passos errados, tomados na simples razão de “só quero que o tormento passe”. Fantasiando mundos e pessoas que jamais chegarei a ser e que, atualmente, venho desejando esconder dos olhos do mundo, na tentativa de ser salva dessa alma castigada de flagelos que nem eu mesma sei nomear, os quais brotam a cada retrospectiva inconsciente ao passado.

Em qual cemitério abandonado minha alma se enterrou?

Partindo do princípio da descrença nessa prática mórbida de se enterrar carcaças inanimadas da imagem de alguém que nem mais pertence aquele corpo, minha alma simplesmente se afundou nas terras frias e escuras desse mundo rodeado de egoísmo.

Sonhos desfeitos ao longo de anos, iniciados na mais tenra infância, com rompimentos contínuos das dores e frustrações de progenitores carregados de traumas demais para se esquecerem destes e orientar a criança que fui, que buscava montar no dorso de um dragão e voar pelo mundo. Porque eu precisava “ser alguém” e isso significava assumir uma profissão de elite cuja renda fosse suficiente para comprar um status na sociedade e as críticas fossem caladas quanto as escolhas feitas na vida.

Imaginação podada para se tornar algo que nunca fui, para ser alguém que hoje não sei se gosto, para tentar representar sabe-se lá os deuses o que e ainda assim, longe do convívio, sigo com os mesmos fantasmas autoritários e exigentes, soprando desaprovações no meu ouvido, a cada não que a vida trata de me dar.

Quantos caminhos tortos percorrerei até que meus pés esfolados sucumbam sob as botas sangrentas?

Quero me despedir dessa existência. Quero desaparecer dessa realidade fatigante na qual tentei erguer castelos fantásticos. O casebre bambo, sem pé direito alto e coberto de lona vacila diante das tempestades ferozes, velho demais para suportar outra enchente, outra lufada.

No berço do mar onde nasci, diante das águas protegidas por entidades diversas, afasto-me do oceano por não o pertencer de fato. Não sou daqui, não sou eu, não sou nada. Um saco sem origem e sem ancestralidade que valha a pena se orgulhar. Banhada de sangue inocente, derramado pelas gerações anteriores dos similares da minha cor, dos povos que descendi e os quais tenho o profundo desprezo.

Quem reflete a alma de meu interior nas vidas passadas?

Talvez uma mulher tristonha, pobre e violada, que resolveu perambular como uma aparição na mata densa e perigosa. Porque o mal dali era menor do que os das cidades. Porque sua solidão era mais segura do que a presença de rostos risonhos, sediados em corpos que diziam ter o mesmo sangue que o dela e por isso deveriam permanecer juntos.

Unidos para qual propósito? Nenhum que verdadeiramente reconheçam. Apenas a obrigação transmitida por inúmeras bocas famintas de palavras e conceitos que se recusam a se alimentar, a se abastecer.

Vestindo batina e entoando canções divinas, reduzem a parca existência das almas dilaceradas pelas constantes podas das consciências altruístas.

Se morrerem todos os bons, quem sobra no final?

O mal nem sempre é como um lobo ou qualquer fera comum que o ser humano adora demonificar, para que seus ímpios impuros não sejam tão ruins, não sejam vistos. Enquanto os bichos sabem e seguem quem são, respeitando cada hierarquia naturalmente estabelecida, seguimos destruindo a cadeia que nos trouxe até aqui, que nos concede a vida.

Às vezes, anseio pelo momento que uma imensa explosão vai varrer toda a existência humana de uma vez. Anseio como um urso polar morrendo sobre calotas de gelo parcas e águas árticas quentes demais para seu conforto.

Anseio com o momento da reescrita o qual fujo tanto a cada história que termino, porque enfiei na minha cabeça que da primeira linha a última tem que sair perfeito, desde o princípio.

Perfeito. Perfeito. Perfeito.

Rompida em mil pedaços, o vazo na estante é jogado no lixo. Não há utilidade para seus cacos espatifados ou razão para tentar colá-los.

Descarte o quebrado, o rompido, o destruído; por acidente ou não. Porque reparar não é uma opção. 

Dentro dessa prisão que vivo em meu corpo há quase 30 anos, restou espaço para respirar? As escapatórias pequeninas entre as grades se fecham com o escorrer do concreto. O sol desaparece no amanhecer cinza dos meus dias. Cada dia, cada semana, cada mês.

Dizem que a maturidade transforma a vida. O que ela fez com a sua? O que ela fez com a minha?

Talvez não seja madura o suficiente para enxergar as nuances da mensagem que o universo ou sabe-se lá o que, quer passar. Ou só fingimos propósito divino para que sejamos menos inúteis e desprezíveis, menos destrutivos diante da pureza dos demais seres, que sofrem só pelo simples fato de existirmos.

Pensei que destrancar essas portas submersas apagaria o aperto no peito, mas ele cresceu. Talvez seja hora de arrancá-lo de fato ou sucumbir junto a ele.

Sucumbir nas lágrimas que derramo enquanto finjo que está tudo bem. Enquanto finjo que escrever é uma salvação e que a minha profissão tem algum futuro (qual?). Finjo ter propósitos e esperança, segurando os fios finos e parcos dos meus sonhos; que são puxados para longe de mim a cada maré de ressaca, a cada mudança de lua, como se a deusa das águas os reclamasse e me testasse quanto a força de mantê-los comigo.

Nenhuma força restou, nenhuma tentativa de ser ou estar.

Povoada por seres humanos cheios de estrutura, propósito e significado, com conselhos e motivações para me manter seguindo, apenas enxergo suas vidas distantes de quem sou. Como se suas imagens fossem afastadas e desfocadas, longe, distante, inalcançável.

Restou o fracasso de alguém que tentou, por anos, “ser alguém”. Porque eu não era e agora não sou, talvez nunca serei. Porque atrelei minha vida ao trabalho e aos cargos, conquistas e diplomas que possam provar que sou alguém, que sou ALGUÉM!

Gritos contidos na garganta explosiva de uma alma turbulenta, nascida no signo regido pelo ar, mas com combustível de fogo, que está errada demais para falar; mentirosa demais para argumentar, exagerada demais, neurótica demais, negativa demais, reclamona, estressada…

Estressada, estressada, estressada.

Ansiosa, ansiosa, ansiosa.

Inabilidades mil destacadas. Por amor ou por dor.

Habilidades inalcançáveis, não importa o esforço (nem sei que quero mesmo me esforçar).

Longe do padrão, longe do destino escolhido e do escrito para mim.

Longe de si, de seu eu mais íntimo, da auto-imagem.

Quem sou? Quem reflete essas frases sofridas que tento tirar do meu coração em uma vil tentativa de desafogar. De me salvar. A heroína interna morreu, vencida pelo cansaço e pelo veneno da vilã maligna que desejava derrubá-la. E esta, também pereceu em sua cova sombria e perversa, sem qualquer recompensa vitoriosa de suas ações, porque nunca houve “sim”, nunca houve vitória de fato.

Campeonatos intermináveis para um pódio invisível que jamais se aproxima. Restou a medalha de participação. Restou o: “eu fui lá”; “foi mesmo? Não vi você!”; “eu não cheguei nos 3 primeiros lugares”; “ah! Por isso não te vi! Da próxima se esforce mais”.

Tente, tente, tente, tente…

E sucumba na areia movediça no meio do deserto árido que é a vida. Não há chuva, não há fertilidade. Os ventos carregam suas areias para fazer viver florestas no outro lado do mundo, as mantendo vivas e fortes. Porque sempre haverá luz quando existir trevas, uma não vive sem a outra. É necessário sofrimento para se existir liberdade.

Enquanto pintei o espírito liberto de mim mesma, sou só a prisioneira sustentando o voo de outrem.

Gritando ou em silêncio, até que um dia a velhice me aproxime da morte ou a coragem de fato venha e traga a ceifadora antes do prazo…

No fim, “ser alguém” é ser nada também. É deixar de ser para poder ser de fato. É simplesmente abandonar a casca, abandonar o ditado, abandonar as regras.

Mergulhada nas histórias pretéritas de uma existência narrada por outrem, simplesmente sou em uma mente que não a minha, em um corpo que não o meu. Venho sendo para além daquilo que me roteirizam e mais do que esperam de mim.

Ser Alguém…

Quem você é nessa jornada?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

2 comentários em “Ser Alguém”

  1. Não consigo colocar em palavras o que senti a cada linha deste texto. Conforme fui rolando a tela, um sentimento forte me envolveu e eu me senti tocada por cada palavra que li. Eu entendi. Eu entendo, infelizmente. Essa sensação de estar perdido e fora de controle da própria vida é assoladora. Você conseguiu passar tantos sentimentos… Que escrita incrível!

    1. Olá, Karol! Obrigada por comentar! E sim! A gente nem se dá conta do quanto nos perdemos ao longo das jornadas. E obrigada mais uma vez! <3

Rolar para cima