Mulheres assassinas? Como soa para você? Para mim soa curioso, para dizer o mínimo.
Antes que você continue lendo esse artigo, quero avisar que pode conter spolier!
Caso seja do time “nenhum detalhe antes de ver pessoalmente” apenas feche a aba ou retorne ao menu e veja outro conteúdo. Caso não, adianto que minha opinião é polêmica.
Assassinato pelas mãos femininas
Será que as mãos delicadas, maternais e calorosas de uma simples e feliz dona de casa é capaz de cometer um crime hediondo? Matar a sangue frio com uma arma pesada e perfurocortante, sem pensar no amanhã? Mais: continuar sua vida como se nada tivesse acontecido?
Amigos e amigas, digo-lhes, é totalmente possível. É mais real e frequente do que qualquer um imagina ou crê.
Essa temática de mulheres assassinas me atrai em demasia. Pelo simples fato do machismo patriarcal guiar o pensamento de cuidadora maternal afetiva para todas as fêmeas dessa existência. Somos vistas como mães, sempre e para sempre, principalmente por quem gerencia e aplica as leis.
O mesmo mal que acometeu o Maníaco do Parque, atingiu a condessa Barthóry, por exemplo, sem restrições quanto a qual genitália havia entre as pernas ou qual identidade de gênero carregavam em suas mentes.
Mal é mal e sociopatia é sociopatia, ponto.
Mas esse detalhe tão factível escapa às mãos da bela Candy, figura principal da série Amor e Morte, disónível na MAX.
Da dona de casa amorosa, participante do coral, mãe de dois belos filhos e totalmente atenciosa, que simplesmente se atraiu por outro homem e resolveu ter um caso. Em seguida, as coisas se encaminharam para segredos revelados, um machado e sangue por todos os lados.
Quem? Onde? Como uma mulher franzina e pequena como Candy teve tanta força? Impossível uma mulher ter feito tamanha atrocidade! Nunca uma mulher seria capaz de cometer um crime desses!
Detalhe sórdido: essa série é baseada em fatos reais. Então, estamos falando, mesmo que pelas lentes da ficção, de recortes da realidade. Na real, mulheres são subjugadas sempre, independente se para executar atividades ou cometer crimes.
Tory Telfer, escritora do livro Lady Killers, destrincha perfeitamente o perigo de subestimar a capacidade criminal feminina. Referenciando casos clássicos, ela nos mostra como os tribunais – ocupados majoritariamente por homens – simplesmente não compreendem como uma mulher é capaz de matar e, muitas vezes, reduzem suas penas ou anulam a culpa; basta ser bonita o bastante.
A erotização da mulher malvada, que veio para realizar seu prazer mais obscuro, não é o foco da série Amor e Morte. Na verdade, o retrato do ápice emocional, do acúmulo de frustrações da dona de casa que não pode ter ambições e que precisa se contentar com cuidar do lar e da família, foram os pontos cruciais e gradativamente condensados em Candy.
Candy pergunta-se o que restava. Qual é o próximo passo? Cuidou do marido, teve dois belos filhos, tem uma casa e agora as crianças estão crescidas, sem a necessidade de tanta atenção básica. Participa da igreja local assiduamente, é parte do comitê de conselheiros do pastor. Gentil, amiga dos vizinhos, sorridente. O que mais? O que lhes faltava?
Candy demonstrou cada pedacinho de angústia quanto aos desconfortos que o papel da mulher cabia e isso ficou mais claro quando sua melhor amiga se divorcia e precisa se mudar. Sempre dizendo à ela que ter um lar e filhos era a única e grande benção.
Mas Candy vê na ideia de ter um caso o fulgor da aventura, de viver algo novo, de se divertir e sair da rotina. Pode parecer fútil e aí você julga como quiser, mas o recorte da inferiorização da ambição feminina é claro.
Fomos criadas para servir domesticamente aos homens e, obviamente, ambição só cabe a eles.
Sim, foi um caso extraconjugal. Foi uma traição, um pecado mortal – contém ironia – e, claro, uma revelação sofrida e sangrenta das consequências da ausência: de planos, de atribuições, de carreira, da ambição, dos sonhos, do ser vista e reconhecida.
Cabe-nos desejar mais do que a sociedade nos permite?
Amor e Morte é uma série sobre um assassinato, mas, acima de tudo, é sobre o limite psicoemocional de uma mulher que sempre conteve as próprias emoções para se encaixar em uma sociedade que só é feliz para os homens que a criou.
Detalhe: 1980 é o ano da série. Qualquer semelhança com a atualidade é uma mera coincidência (será?).
Peguei-me mais identificada com Candy do que imaginei. Apesar de criada para focar na minha carreira, ainda cresci em um lar no qual eu tinha hora para voltar para casa, roupa ideal para vestir e comportamentos adequados para cumprir.
Talvez eu fosse Candy se tivesse nascido na mesma época e na mesma classe social; buscar um homem bem-sucedido para me casar era a minha única missão. Como soa cruel!
Lógico que as frustrações da vida não justificam crimes, mas somos tão resumidas ao doméstico que é fácil entender Candy. É fácil compreender os desvios de sua mente, os acúmulos ignorados por ela mesma e por todos ao seu redor.
Cuidando de todos ao redor ela mesma não presta atenção em si. É doentio, sufocante. Para além do impacto desse caso, percebemos como continuamente somos empurradas para essa esfera de cuidadora sorridente, sensual só quando permitido e necessário. Essa atmosfera repicada, única da visão masculina.
Penso muito sobre quanto a construção familiar como o sonho máximo da mulher é prejudicial. Doentio até. Idealizar pessoas, convivências, dinâmicas sociais como um sonho, como se fosse possível controlar terceiros, como se estivéssemos dentro de um enorme The Sims e podemos ditar qual comportamento cada um deve ter.
Dá para imaginar como os traumas surgem, principalmente para os filhos altamente desejados e sonhos de vida de muitas de nós, obrigadas a engolir essa realidade.
Pois é, Candy. Eu a entendo totalmente, mas ainda a considero culpada.
O resto é dramaturgia e essa série é um solavanco de realidade.
Beijos de Fogo.