Tempo de (Má) Qualidade

Porque não preciso bater meta alguma sobre qualquer tipo de coisa que um terceiro imaginou.

Tempo de (Má) Qualidade
Tempo de (Má) Qualidade. Fonte: IA Canva. GMRhaekyrion.

Comecei a escrever aos 13 anos e agora tenho 30. Quando era adolescente, o tempo de diversão era de frente ao computador, jogando RPG de Texto ou colocando mais uma ideia mirabolante no capítulo novo da fanfic – sem roteiro prévio, sem ficha de personagem, sem curso de escrita criativa, sem pós-graduação em jornalismo digital; mesmo assim, escrevi 40 capítulos de um enredo que, diga-se de passagem, foi uma revolução para época. 

Eu pensei fora da caixinha, acreditei em mim e postei. Não tinha instagram para fazer o marketing prévio ou eu precisava postar todo dia alguma frase tola, recortada de modo específico para aguçar a curiosidade. Era só abrir o quadro de postagem, organizar meu capítulo e publicar. No máximo, publicava um comentário no fórum do site que tinha saído capítulo novo. Se quer falava para minhas amigas da escola o que eu tava escrevendo, fui só alimentando minha imaginação e pronto.

Sei que não devo medir sucesso com visualização, mas sei que atingi o nível de membro senior do atual Spirit Fanfic, assim como fui parte dos membros revisores de fanfics e mentora de escrita. Eu recebia vários capítulos iniciais, de histórias originais ou fanfics, de membros que participavam dos concursos de prêmios de melhor fanfic ou melhor história do mês. Eu lia, revisava, conversava com essas escritoras sem a menor pressão de ser profissional, digamos assim.

Tão pouco, me importava com questões de quando chegaria a esses “cargos”. Apenas escrevia, me divertia e fui aceitando viver novas experiências. 

Em 2018 resolvi ingressar na vida de escritora propriamente dita. De 2008 até maio de 2018, mantive-me escrevendo contos, enredos novos para minha mesa de RPG, roteiros para curtas e uma penca de outras ideias escritas num caderninho que guardo até hoje. 

Não me preocupava em ser perfeita, ou em ser qualquer coisa parecida com uma escritora de sucesso. Eu via a “fama” e o “sucesso” em publicar meu livro, apenas isso. Achava que achar um editora e publicar me faria ter sucesso. Mar dos Lamentos nasceu, então, sou bem-sucedida? 

A verdade é que a vida adulta, a consciência capitalista exploratória e a Era da Produtividade, matou o que aprendi na terapia ser: tempo de qualidade. 

Nunca se falou tanto sobre saúde mental. “Linguagem ativa”, “capacidade comunicacional”, “exaustão mental”, “pensamento intrusivo”, “tempo de qualidade” e mais uma série de termos que devem ser mais antigos do que realmente são, mas ganharam potência atualmente. 

Na adolescência e começo da vida adulta, eu estudava o que era minha obrigação e depois eliminava da cabeça qualquer compromisso. Tinha tempo de qualidade para mim, para minha família, meus amigos, minha esposa. Eu vivia e ponto. Não tinham tantos pensamentos como: “trabalhe enquanto eles descansam. Estude enquanto eles dorme e adoeça, enquanto eles usam suas heranças para investir nos sonhso”. Eu vivia o aqui e o agora, por mais que me considerasse uma pessoa ansiosa desde sempre. 

Hoje, simplesmente vivo uma compulsão doentia em: produzir, produzir, produzir. “Vamos adiantar tal matéria, porque ganharei tempo depois”. “Vou fazer logo o relatório, inteiro, porque ganharei tempo depois”. “Se eu começar hoje os resumos para os congressos que ainda não abriram, ganharei tempo depois”. 

E depois? O que é esse depois? O que é essa vida de acúmulo de páginas no lattes e bens materiais inúteis? Que tipo de sentido tem simplesmente se atolar de responsabilidade e tarefas extracurriculares com a justificativa de que isso é bom para o currículo? Que tipo de compensação emocional significa me encher de um estresse medonho e hediondo, para, sei lá, alguém olhar pro meu bornout e dizer: “olha só, como ela é guerreira”!

PORRA!

Queria uma espada e o poder de controlar o fogo. Era esse o tipo de guerreira que queria ser. Não um acrônimo para explorada do mercado – destruidor – de trabalho, que tem 20 e-mails para receber o meu currículo e, mesmo assim, nunca os leva em consideração; aliás, é melhor pedir uma indicação da equipe mesmo. O famoso QI. 

E esse tempo de qualidade? Virou tarefa. Virou um check-list doentio para eu postar no instagram uma mesa linda, decorada, com uma frase que passei horas elaborando para te convencer a querer ler um livro, que não está pronto e nem nunca vai ficar, dado o tempo que perco tentando agradar um algoritimo. 

Outrora: momento para ser criativa e viver aventuras. 

Atualidade: instantes instagramáveis que preciso bater porque alguém – um diabo, provavelmente – disse que é necessário para o sucesso: postar diariamente, mostrar meu cotidiano, divulgar minha obra antes mesmo dela existir, estabelecer um prazo curtissimo e uma meta ridiculamente curta para publicar um livro por ano, ainda assim, ler referências que conversem com esse futuro leitor, cuidar da carreira formal na vida fora das telas – esta que exige ainda mais para eu ser apenas bióloga e ter um emprego digno -, manter minha casa limpa e, ainda, conseguir renda extra suficiente para uma tal financeira ganhe o mérito de economista do ano, enquanto acumula milhões às custas do seu desespero e do decrépito mercado econômico o qual vivemos. 

Parece um surto coletivo. Uma brisa nada boa e longa demais, para ser franca. Quase um episódio do black mirror. 

Então, eu, como todo macaco de experimento comportamental, bato minha meta diária de autocobrança excessiva, enchendo-me de tarefas impossíveis de cumprir em um dia, transformando todo e qualquer tempo que tenho, em uma espécie de produtividade. 

Cara, como titio Marx teria pena de mim. Assim como Platão. Vivo nessa caverna de sombras, ignorando a verdadeira realidade, cujo vislumbre reflete nas sombras as quais me contento em assistir. 

Sei que estou ali, sofro por isso, me iludo. Mas, na prática, não saio. Não consigo sair. 

E creio que nenhuma terapia no mundo ou estoques de sertralina infinitas, vão me libertar sem que eu tome passos doloridos essenciais e aceite a solidão de ser eu mesma. 

Solidão essa, que se estende às obras que escrevo. Estende-se a esses personagens que vieram me ensinar sobre seu mundo, mas se tornaram os óculos de realidade virtual para acumular minhas dores, enquanto me entrego ao mundo alternativo atrás dessas “lentes”. Sem sentir, sem me desligar. 

A vida é solitária, escrever também o é. 

Enquanto me engano sobre ter chegado ao fim dos meus dias de escritora, estou aqui, redigindo esse texto, provando justamente o contrário. 

Porque não preciso bater meta alguma sobre qualquer tipo de coisa que um terceiro imaginou.

A meta, o objetivo, os desafios envolvendo escrita – e o resto da vida – devem ser meus. Eu contra a minha versão antiga, dando luz a uma nova, mais madura, pronta para enfrentar o próximo boss, que também sou eu. Sempre será eu, comigo. Eu contra eu. Nada dessa voz alucinógena de mídia e sistemas econômicos ou, como de costume, dos parentes, amigos e seres humanos ao redor, que ditam aquilo que EU preciso ser ou fazer ou acreditar. 

Se neguei o Deus cristão dentro de um lar católico até o tutano, tenho força para negar a sorte de imperativos dos outros. 

Então, no fim, o tempo era de má qualidade. E esse não serve para o propósito que busco. 

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