Publicado no Brasil originalmente pela editora Leya, e assumido pela SUMA, o livro de ficção científica, Wild Cards: O Começo de Tudo, é o primeiro volume de uma saga que já acumula vinte e dois livros publicados.
Fruto do trabalho de diversos escritores, sua grande fama carrega o nome de George R. R. Martin na capa. O trabalho do autor da aclamada série As Crônicas de Gelo e Fogo se dá na edição e na escrita de um dos capítulos.
Abordando poderes sobre-humanos e seres extraterrestres, Wild Cards: O Começo de Tudo, dá uma sacudida no clichê da invasão alienígena e a epidemia de um vírus mortal.
Wild Cards – Experimentos Alienígenas e Poderes Extraordinários
Adquiri um exemplar desse livro pelo simples fato de estar apaixonada por George Martin, queria ler o máximo de obras possível dele. Então, a escolha nem foi pela sinopse ou pela capa, mas pelo escritor.
Ficção científica é um gênero que amo nos filmes, mas pouco consumo na literatura. Confesso que o coitado do meu exemplar de Wild Cards ficou na prateleira por um bom tempo antes que realmente desse uma chance. Ao ler a primeira linha, bem desconfiada, fui julgando qualquer pedaço da construção antes mesmo de consumir por inteiro. Cada parágrafo eu dizia: “mais um para dar uma chance. Só mais um. Outra chance”. Parece até que não gostei da leitura, mas já estava totalmente envolvida.
Estava em uma época supercrítica da minha vida. Qualquer coisa passava na malha-fina da recém intitulada GMRhaekyrion. Eu queria criticar o enredo, as técnicas, a construção, as personagens. Foi o bum da recém experienciada em escrita criativa e redação para blog. Simplesmente me coloquei no alto-padrão de revisão crítica, sem me permitir diversão.
Porém, esse livro simplesmente me desconstruiu. Ele deu o tapa na cara que eu precisava para entender que os tais padrões de escrita ditados como corretos pelos gurus da internet não existiam, tão pouco faziam sentido para o mundo real.
Já começa com diversos pontos de vista, uma característica que realmente amo nos livros. Depois, veio a beleza alucinante da mistura da biologia – no caso da obra, de um vírus a solta e incontrolável – com reações adversas inusitadas: superpoderes. Então, teve um pequeno plus: incrementação de eventos históricos reais explicados pela ótica do enredo fictício.
Tudo isso iniciado por uma invasão alienígena. Não tinha como ser ruim, não dava! Eu simplesmente me apaixonei.
Vida Real, Enredo Ficcional e Corrupção
Wild Cards: O começo de Tudo me levou para uma viagem de décadas, que envolve desde a Segunda Guerra Mundial, até a Guerra Fria e a Corrida Espacial. Misturar eventos históricos reais com a narrativa ficcional é uma arte que costumo dizer digna de gênios.
Consigo criar mundos do 0 e imaginar toda uma sociedade e universo, mas não consigo inserir a vida real, as datas e demais eventos, dentro de um enredo ficcional. Esse tipo de habilidade me atrai profundamente e me deixou rendida.
As tenções bélicas influenciaram o desenvolvimento de um mundo dominado por uma espécie de vírus, que transformou a biologia humana completamente. Se a realidade na qual vivemos é bastante surreal sem o advento de superpoderes, imagina se eles fossem o critério de status quo e não tivesse qualquer limite quanto a isso – claro, se você for rico e pertencer a classe A da história.
Se a pandemia do coronavírus já foi absurda de surreal, quero nem imaginar como seria uma envolvendo o vírus dos Ases.
A explicação científica é de encher os olhos da cientista que me povoa. Cada mutação tem sentido de ser e reflexo na habilidade assumida por esse novo corpo que não é necessariamente humano e pode parecer que continua tão Homo spiens sapiens.
Para quem assistiu The Boys e caiu de paraquedas nessa resenha do livro, já deve imaginar como o nosso querido sistema capitalista abraçou calidamente essa oportunidade.
Soldados? Políticos influentes? Médicos? Industriar do que se pode imaginar, com tais poderes como produto recheado de lucro.
Como sempre o capitalismo consegue transformar qualquer coisa em lucro, independente das vidas marginalizadas, das crises e guerra civil não declarada. Se está bem para o 1% da população, o resto pouco importa.
Quando pensamos em super-heróis, temos a expectativa que seus poderes vão ajustar o que as leis e a sociedade comum não consegue. A expectativa de haver essa pessoa especial, que carrega a responsabilidade de corrigir os desvios humanos, é bem infantil e vem sendo rompida nas produções envolvendo essa temática.
Todavia, em Wild Cards, existem pessoas poderosas o bastante para destruir o planeta, mas a prisão mental do sistema corrupto o qual já vivemos controla todos.
A Industria do Sexo e a Bélica no Comando
Para começar, não há uma sequência exatamente cronológica entre os capítulos, mas também não flutua indo e vindo nos anos. É mais como um relato de caso, partindo do ponto de vista de cada personagem.
Cada capítulo tem um personagem diferente e eles contam como o vírus alienígena afetou a sua vida. Existes os mutantes Ases, que possuem poderes extraordinários e mantém a aparência linda. E os coringas, que tiveram seu físico deformado pelas mutações do vírus.
O interessante é que essa distinção já nos dá um respaldo do que vivemos hoje em dia. O padrão de beleza leva muitos humanos à margem da sociedade, vivendo do tráfico para conseguir dinheiro ou usando seu corpo “exótico” para alimentar a indústria do sexo.
Esse lado do sexo, da venda do corpo ou de habilidades que proporcionam prazer em níveis impensáveis, me pegou profundamente. Por ser mulher e passar anos da minha vida achando que ser interessante é corresponder ao objeto de desejo masculino, ao padrão misógino e medonho do patriarcado, penso como é avassalador o domínio desse sistema cultural, a permanência – até piorada – da exploração da mulher, que não tem outra opção para ganhar dignamente, porque agora seu corpo é meio felino e diversos cabeças-brancas pagam horrores por uma hora com suas mãos de gato.
Ou, o meu orgasmo proporciona um estado de meditação para o nível nirvana. Qualquer coisa que possa alimentar o prazer masculino insaciável, é usado para ganhar dinheiro. Usado compulsivamente, transformando seres em objetos, ponto final. Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
Quando não, a força, a inteligência, a habilidade são usadas como armas bélicas para alimentar a crescente guerra pelo poder econômico e político do mundo.
Se com a tecnologia estamos em perigo quanto a isso, imagina com habilidades sobre-humanas?
Quando a população é vista como objeto sexual ou como soldado para guerra, qual tipo de valor a sociedade sustenta? Qual formação social se estrutura?
Wild Cards: O Começo de Tudo é um show de ficção cientifica bem-feita, que possui uma rede muito minuciosa de ligação entre as personagens e que vai te surpreender desde o primeiro parágrafo.
Agora, se você pudesse escolher um poder sobre humano, qual teria?
Beijos de Fogo