Esse foi um livro que o nome me capturou desde o primeiro instante em que o li. Passeava entre os títulos da livraria da minha cidade, buscando uma obra capaz de me tirar da ressaca literária. Não sei exatamente o que havia lido antes, mas queria sair da fantasia e mergulhar em um gênero diferente, de preferência dentro do terror ou suspense, que não fosse do Stephen King.
Tentei não cair na DarkSiders, mas foi impossível. O silência da casa fria me roubou desde o primeiro instante. Li sua sinopse, coisa que pouco faço, e soube imediatamente que amaria o enredo descrito naquelas páginas.
O comprei, guardei na pilha de livros ainda não lidos e, como uma boa leitora, o abandonei para ler outras coisas.
Até que Laura Purcell me chamou. Elsie me chamou. Então, apenas me deixei levar. Ainda que o tenha feito nesse período caótico que está sendo o encerramento do mestrado.
Uma Viúva, Uma Casa no Campo e Uma Maldição
Poucas histórias me fizeram chorar ou ter medo genuíno, conto nos dedos de uma mão ambas as condições. Precisarei incluir esse livro no bolo.
Gosto de ler de noite, principalmente antes de dormir, mas não consegui fazê-lo com O silêncio da casa fria. Na realidade, até de dia ele me causava arrepios.
Quando se consome uma quantidade considerável de histórias de espíritos e se é médium, a variação de roteiro é mínima. Quase aceito que toda obra terá a casa mal-assombrada e o espírito perturbado preso a ela. Com Elsie as coisas começaram assim também.
Elsie Bainbridge enfrenta o luto da viuvez enquanto se muda da cidade agitada de Londres para um interior campestre, onde endereça a casa da família de seu marido; uma herança de séculos.
Como uma boa garota da cidade grande, tal mudança simplesmente piora seu humor. E se não fosse a companhia da prima de seu marido, Sarah Bainbridge, as coisas se agravariam um tanto.
Não que Elsie seja a simpatia em pessoa. Na verdade, seu mau humor me faz sentir altamente representada. Ela traz essa realidade banal de que ninguém gosta de ser transferida de um lugar confortável, pleno e aconchegante, para outro totalmente hostil. Ainda com um funeral para enfrentar e a boa aparência para ser mantida diante da população.
Nunca fui da política – nem quero ser –, mas me perpassa uma angústia medonha e empática por Elsi ao ter suas emoções engolidas para que possa gerir os afazeres de uma boa lady, que precisa tocar os negócios da família, salvar o vilarejo vassalo da miséria e, ainda, conseguir boas alianças comerciais. Tudo isso sendo uma mulher sozinha, grávida, em 1865.
Esse livro tem uma escrita suave, refinada, quase como se cada linha fosse Elsie, mostrasse as camadas de sua personalidade apenas pela forma da escrita. Achei magistral esse sentimento, esse envolvimento. Não dá para se cansar de ler. Queria passar horas e mais horas, desvendar o mistério dessa casa mal-assombrada, quem a perturbava de fato. Porém, nem sempre estava acompanhada e depois de entender que havia uma presença sinistra no convívio de Elsie, ler sozinha não era uma opção – sem exagero!
“O médico é homem. Não pode compreender esta dor.”
Uma história retratada no período de 1800 vai abordar o sexismo. É impossível desconsiderar tal aspecto, principalmente nessa época.
Elsie, bem como as criadas de sua casa, são mulheres mais do que independentes e seguras de si. No entanto, durante todo o enredo, quando surge a presença masculina, a primeira ação é de reduzir e minimizar os sentimentos expressados por qualquer uma delas.
Parece-me que por não conseguirem digerir as próprias emoções, se veem no desconforto da incompreensão da abundância emocional que nós somos.
Então, quando em posição de domínio profissional, como um médico, o julgamento deles, o limiar de dor deles, é o parâmetro.
Marcou-me muito os pensamentos e falas de Elsie, a forma como ela era cirúrgica em pontuar que homem algum é capaz de compreender o mínimo que seja sobre nós.
A Loura de Elsie no Silêncio da Casa Fria
Desde que li A paciente silenciosa, a loucura como alcunha feminina se tornou destaque em diversas outras obras que consumi, especialmente nas que envolvem protagonistas inteligentes e sagazes, que contrariam os argumentos masculinos, ou nas sensitivas e intuitivas, enxergando para além do convencional.
Dentro do cenário de espíritos e aparições, Elsie é a louca por ver e crer nas atividades paranormais ocorridas. Por ter coragem de afirmá-las, por ser alguém independente e, claro, sem qualquer homem para “guiá-la”.
Claro que seu médico sugere loucura. Claro que é a “loucura” que acometeu uma mulher, que enterrou a maior parte de seus familiares, e não o estresse, o medo, a revolta de não poder mais ser alguém por si só, visto que seu marido morreu e agora ela está “sem dono”.
“Viu mesmo? Ou alguém implantou a ideia em sua mente?”
Óbvio que somos loucas por discordamos, sermos enérgicas, ambiciosas, focadas, frias, calculistas, gananciosas, seguras de nós, felizes sozinhas, bem sucessididas em nossas carreiras, independentes e uma penca de características que, para os homens, são elogios, apenas.
Elsie é apenas uma mulher que precisou amadurecer cedo demais, ser mãe do próprio irmão depois de perder os pais e empresária da fábrica de fósforo da família, pois o herdeiro precisava crescer para ser o dono do lugar.
Claro que ela precisou se casar, porque é isso que se espera de uma mulher; que tinha domínio de sua vida por inteiro e tornou-se o adereço de um senhor gentil e ingênuo demais, até que a morte o ceifou e ela, novamente, precisou viver sozinha. Agora, sem a proteção de tutora da criança herdeira para mantê-la segura na posição social conquistada.
Eu também “enlouqueceria” se estivesse em seu lugar.
Tal mãe, tal filha…
Esse livro salta em períodos no tempo, saindo da visão de Elsi para a visão de Anne Bainbridge, que viveu em 1635.
Se em 1865 as coisas eram complicadas, imagina em 1635!
Na visão de Anne, a família vivia a bonança financeira de quem conquistou as graças da coroa britânica. Comida farta, acessórios de gemas verdadeiras e uma penca de criados para deixar a bela casa na Ponte esplêndida.
Anne era uma mulher que cumpria seu dever de esposa e mãe com louvor, sem brechas para a falação alheia sobre sua conduta. Até porque, as más línguas relacionavam os chás de fertilidade usados para que concebesse outra vez como bruxaria. E no auge da caça às bruxas, qualquer conhecimento feminino podia ser interpretado como feitiço – Homens, sempre temendo serem superados e sempre sendo superados por nós.
Anne queria uma filha para ser sua companhia, a começar por esse quesito. Crescida com a irmã, que morrera de forma inesperada, sentia-se sozinha na companhia de um marido e três filhos semelhantes a ele. Nenhuma jovem moça para acompanhá-la nas “coisas de mulheres”. Então, Heta nasceu e as coisas mudaram.
A felicidade voltou, a alegria encheu a casa e a vida se tornou melhor – Para quem?
““Hetta não é como eu. Isso não é culpa dela, é claro, mas cada diferença que encontro é uma falha no sonho que tive com minha filha.”
Existe um traço na sociedade que me leva ao pior estado de ira: ter filhos para se tornarem extensão de seus progenitores, realizadores de sonhos e feitos os quais a covardia não os permite fazê-los por si só.
Hetta não era a filha de Anne, era a boneca. Ou era isso que Anne queria que fosse, pois Hetta era dona de uma personalidade forte e não se dobrava aos caprichos de sua mãe, muito menos à ignorância e frieza de seus irmãos e pai.
Hetta me representou em diversos aspectos, em inúmeros momentos me vi criancinha – a primeira neta da família paterna e a primeira filha de minha mãe – sendo guiada a seguir padrões que minha avó paterna desejava ou que minha mãe acreditava que eu queria. Como Heta, nunca fui declinada à submissão e ao longo da minha infância a personalidade moleca e cheia de vontade se mostrou demais para ambas combaterem.
Tantos livros escritos por mulheres que li e a doutrina destinada às mulheres existe em todas as esferas, não importa se é uma fantasia ou uma história que se passa no período atual. Somos sempre o adereço reprodutivo que precisa cumprir a imposta expectativa masculina. Tantos que são escritos por homens e trazem a mesma máxima, obviamente.
Não consigo pensar que falta estudo e conhecimento quanto aos povos de cultura matriarcal, incluindo a posição da própria mulher no período medieval antes da instituição igreja ser estabelecida.
Sinto como se a opressão fosse o único lado nosso que é abordado. Como se nos resumissemos a provar constantemente as nossas capacidades, conhecimentos e sentimentos.
Reflito cada vez mais sobre essas questões, principalmente para construir mundos com dinâmicas sociais diferentes da atual ou com um patriarcado que é derrubado e destituído a fogo e sangue.
“A mente do médico devia estar aturdida com os mesmos pensamentos que a de Elsie: por que confiei nela?”
O silêncio da casa fria foi um livro marcante na minha vida. Considero-o uma obra indispensável para quem gosta de se arrepiar com mistérios de casas malassombradas; especialmente uma que tem um enredo clichê com um toque peculiar.
Guardo-o junto das demais caveirinhas com muito carinho e se você já leu, conta como foi sua experiência.
Antes que me despeça, digo-lhes: nunca estamos sozinhos em nossas casas.
Beijos de Fogo.