Calada, no silêncio das vozes esganiçadas da minha mente, estremeço sobre a linha fina e torta da esperança. Seguro fortemente a haste de madeira que me ajuda no equilíbrio, uma haste desgastada pelo tempo. As pontas esfarelam a cada passo mais longo, tirando estabilidade aos poucos.
Lá embaixo, no abismo, a escuridão me encara com dois enormes olhos vermelhos injetados de tristeza. Ela espera, ansiosa, com uma bocarra escondida nas sombras, para engolir meu corpo, a linha e a haste. Ela agoura minha queda, dia após dia, pacientemente. Tendo mais resiliência do que conseguiria reunir em anos de existência.
Mesmo assim, caminho.
Caminho, porque a coragem para pular é nula e menor do que a de dar outro passo à frente.
Caminho, porque um dia disseram que deveria, que havia chance, que havia luz.
Vozes, muitas, ecoam dentro de mim. Zumbem mandatos imperativos de cenas do passado. Ressaltam uma frase aqui, uma cena acolá. Elas sabem, lembram, muito mais do que as horas incontáveis em que assisto outra voz me dizer assuntos que prometem um futuro seguro.
Busco, infindavelmente, a chance de segurar as estacas finas da chegada, firmando-me no solo terroso do que imagino ser o fim. Eu chego lá? Não chego. Eu chego.
Eu chegarei.
Nunca chegará.
Jamais alcançará.
Dia, dia, dia. Noite, noite, noite. E as vozes continuam murmurando imperativos.
“Pule, vai encarrar a jornada”- Essa é mais parecida com o Abismo.
“Caminhe, está quase lá” – Essa tem cara maternal. Ou qualquer outro que veja na linha fina uma largura que não sinto, nem um pouco. Talvez nunca sentirei.
“Qual a razão de caminhar?” – Essa já se parece um pouco mais comigo, com o que deveria ser eu. Alguém com respostar certas, mesmo para apontar os desgostos. Saber o que não quer, é saber alguma coisa.
No fim, nenhuma delas se personifica, tão pouco acho imagem para espalhar a realidade. E na frente, no caminho ladrilhado de pedrinhas amarelas, existe nada. Só o silêncio da solidão de quem sou, caminhando sem fazer barulho, enquanto gritos aterradores ecoam dentro de mim.
Por vezes, vultos fantasmagóricos flutuam para perto. Dizem uma coisa ou outra, acompanham-me alguns passos, às vezes por um tempo maior, e se despedem encarando uns aos outros, julgando-me sortuda por tamanha companhia.
Enquanto isso, sigo profundamente sozinha, ouvindo essas vozes que vem do nada, nascidas do escuro, para preencher o vazio que me acostumei a carregar.
Nunca fui e nunca serei a completude do que enxergam. Existem sombras ainda mais sombrias dentro de mim. No corpo trêmulo, trôpego, arranhado e cheio de farpas ainda aterradas na carne, que não viu outra alternativa além de caminhar.
Pé ante pé, perco os dedos. Perco o mindinho, que é o primeiro da fila, depois seu vizinho, segue-se para o outro e mais e mais. Até que não haja pé ou perna. Ou, até que a haste degrade, escorrendo fiapinhos minúsculos a cada calor das cachoeiras salgadas que caem aos lados, respingando a acidez de seu oceano poluído.
Falam dia, mas só há noite. Noites incontáveis, sem lua ou qualquer espaço para luz.
Só há dor e existência, sem propósito ou razão de ser.
Perguntas, as levantadas por essas vozes ridículas e incansáveis, que nunca serão respondidas. Dessas de enrolar a alma e fazer os demais espectros fantasmagóricos ao meu redor estremecerem de desespero.
Então, oferecem-me papiros. Uns com selos de um lugar superior, outros apenas assinaturas. E ali tem meu nome, provam conquistas que são melhor vistas por eles do que por mim. Depois, me perguntam onde está o papel verdinho, o que serve para comprar outra haste e sapatos, tampões para os meus ouvidos.
Capas. Muitas. Para aplacar os desconfortos, enquanto continuo caminhando. Porque se jogar no Abismo é pior, é escandaloso, é aterrador. Porque desistir é sinônimo de derrota e não de vitória e os espectros precisam sentir o gosto dela, mesmo que nos outros, mesmo que projetem suas luzes cinzas para mim, que nenhuma luz emana.
Então, os espectros falam. Dizem coisas demais, inertes e alheios as vozes já caóticas que ecoam dentro de mim. Surdos para a minha própria voz, que tenta verbalizar os anagramas presos na garganta. Mas eles não entendem runas, portanto, interpretam no português simplificado de seu conhecimento. Não por ignorância nata, mas por uma que preferem adquirir.
Porque entender as runas, significa assumir a culpa de algumas farpas cravados em mim. Porque significa assumir responsabilidade e ela é um peso a mais nas suas cordas bambas ditas largas, mas tão finas quanto a minha.
Assim, caminho.
Profundamente sozinha.
Aceitando o caos como normalidade e a normalidade como caos. Vendo a haste desfazer-se, desesperadamente. Incapaz de envernizá-la, não totalmente. Vendo os fragmentos de pele, músculo e ossos dos meus dedos, pingando para o Abismo. Os curativos pairam ao redor, mas cada espectro pega um para si antes que eu consiga recrutá-los.
Marco-me de nada. De uma espécie de história, que não vejo quando olho para trás. No seu lugar, acena um sorriso torto, ao seu lado dois fios prateados de linhas salgadas se destacam. A conjuntura está em uma altura que parece ser a de uma criança. Eu a vejo, imagino-a acenando, mas não posso retribuir. Ando um pouco mais, espio atrás de mim, a vejo acenando e despendo mais pedaços de mim; cabelos, unhas, dentes, pele do rosto.
Despenco-me em flocos de areia morta, engolidas pelo Abismo.
A criança, no entanto, continua lá. Sempre a uma distância possível para minha visão, mas nunca próxima o bastante para tocá-la.
Ela continua me encarando, acenando, sorrindo e chorando.
“Quem é você?” – grito, nos dias que os espectros se vão e as vozes dentro de mim adormecem.
Ela fecha o sorriso, restando os fios prateados. Eles se movem em negação e eu entendo que ela não pode falar; ou não quer.
Então, volta o barulho e eu preciso caminhar. Outro passinho, bem pequeno, pois meus joelhos doem. Eles dobram mais do que antes para se equilibrar, pertinho da linha bamba. Eles rangem, gemem, pedem socorro. Mas preciso continuar.
Assim, cheia de um caos atormentador, sigo…
… profundamente sozinha.
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