Os animes possuem o estranho poder de me curar de certos impactos da dura realidade que vivo. No lugar da TV Globinho e dos desenhos costumeiros desse horário do dia, a pequena Gabriela assistia Sailor Moon, Digimon, Pokemon – há uma moda com sufixo mon no final do seculo XX/início do século XXI, ou é só coincidência? –, Samurai X, Inu Yasha e a sorte de outros títulos, que me ensinaram, em suma, o poder do amor e da amizade.
Meio mundo utópico essa ideia, totalmente diferente das cenas brutais de algumas animações que assisti, mas é desse jeito que me lembro das obras.
A conexão forte com a infância e o jeito japonês de carregar personagens com um desenvolvimento emocional avassalador sempre me carregam para o mundo dos animes.
Precisava de um que fosse curtinho e Belle estava esquecido na minha lista da Netflix, quase gritando para ser escolhido. Que bom que o fiz.
A VIDA Virtual de Belle
Belle foi um anime que guardei na minha lista da Netflix por ter uma protagonista com a cara de uma personagem que estava escrevendo no turno mais recente da mesa de RPG a qual mestro.
Uma garota de longos cabelos rosas que tem a canção como seu grandioso poder. Sim, a minha personagem também tem essas configurações, só não é uma colegial do ensino médio, muito menos um ser humano; a identidade dela será revelada no tempo certo.
Voltemos para Belle e Suzu, a garota por trás do avatar com o significado de beleza ou bela no nome.
Esse não é o primeiro anime com realidade virtual que assisto, iniciei essa vida viciante com Sword Art Online (SÃO) e achei as configurações desse mundo chamando U muito parecidas com SAO, a diferença está que no primeiro a avatar é escolhida pela plataforma de acordo com as características mais evidentes do usuário. Como uma forma de destacar as qualidades ou traços fortes de uma personalidade.
Um passado trágico, adolescente traumatizada, complexo de inferioridade e culpa, dificuldade para encarar a realidade. O pacote perfeito para aceitar um convite de um universo onde você pode ser o que desejar e recomeçar seus sonhos e ambições da forma mais mágica possível. Eu gostaria de viver esse mundo, de experimentar quais traços o U destacaria em mim e se eu seria tão bonita quanto Belle ao ter meu avatar, se teria traços animalescos em um corpo humanoide, como costumo fazer para com minhas personagens.
É raro o protagonismo feminino nos animes e isso vem mudando, graças aos deuses. Belle carrega uma personalidade bastante determinada, tem uma compaixão e uma coragem que ela não enxerga em si.
Recentemente, defendi meu mestrado e minha amiga, Thays Francyery, inventou de me emocionar falando o quanto faço as coisas com paixão, que não percebo isso em mim, que pouco me enxergo. Será que sou parecida com Belle? Será que preciso do mundo de U para desabrochar?
A verdade é que a realidade a qual vivo é bastante complicada para se dizer necessariamente boa. Nos tempos vividos, quem não pensa o mesmo? É bastante compreensível como Belle simplesmente abandona sua rotina comum para ser uma estrela da música famosa. Por não acreditar que se mostrasse seu lado mais incrível como Suzu teria o mesmo efeito, por precisar esconder as dores da adolescente em luto.
Escrever mundo fictícios é um modo de me desconectar dos meus traumas para que possa ter esperança no amanhã. Tal qual Belle, optaria por viver no mundo de U. Não a julgo.
A Monotonia necessária das cenas de “nada”
Uma característica típica dos animes são as cenas de “nada”. Banais. Uma pessoa cozinhando o jantar, lavando os pratos do dia anterior, cuidando do jardim ou arrumando a casa, dobrando roupas, lendo, vendo a paisagem mudar pela janela do metrô. A música de fundo e a vida acontecendo, sem adereços.
O Studio Ghibli é famoso por esses momentos classificados como “nada” nos jargões do roteiro e da escrita. Apenas cenas as quais o mundo acontece, sem nenhum acréscimo de magia, luta ou revelação. Um suspiro no meio da trama cuja sensação transmitida é de uma calmaria ímpar.
Caminhando pela jornada de ser escritora nesse país, acompanhei uma série de gurus da escrita e suas ditaduras literárias – criadas das fontes de suas mentes – quanto as cenas de ação serem necessárias em todos os capítulos de uma obra. Que é preciso ter algo – inominado e indefinido. Um “algo” qualquer, que ninguém diz o que é e não tolera que esse espaço seja preenchido por banalidades.
Passei muito tempo julgando os momentos de respiro – como chamo as cenas banais das histórias que escrevo – como descartáveis. Espremia minha cabeça para haver uma luta, uma revelação, um mistério, um suspense ou qualquer que fosse a ação impactante em todos os capítulos.
Resultado: minhas histórias ficam esgotadas e sem profundidade. O segundo resultado: descartei uma penca de livros de quase 400 páginas do word por nem eu mesma gostar de ler a obra.
Então, voltei-me ao começo: animes. E neles as cenas de pausa – “nada” – são simplesmente as que mais me atraem. As que mostram camadas da personalidade das personagens sem que haja narração de terceiro, pensamento, ou qualquer coisa parecida. Apenas elas sendo elas em sua vida mais comum.
Conecto-me muito mais com essas personagens nesses momentos do que quando as batalhas épicas eclodem.
Belle tem esse traço incrível, tanto no mundo de U, quanto na sua vida real. Ela mostra a dualidade do sentimento dela quando é Belle e quando é Suzu, incluindo as cenas banais. Nesses instantes, as dores do seu luto e da solidão evidenciam de maneira tal a causar sufoco.
Quis abraçá-la, dizer-lhes que vai ficar tudo bem, como se ela fosse uma amiga muito querida com quem me preocupo.
As Máscaras e a Solidão das Telas
Você sente mais coragem atrás da tela do seu celular ou computador? Eu me sinto.
Sou da geração que viu a evolução avassaladora da internet e dos computadores, até a chegada dos smartphones, os quais parecem um marcapasso emocional cuja presença é vinculada a nossa existência.
Jogos online e de console completavam minha diversão quando criança – até hoje o fazem, por sinal – e quando a adolescência chegou, obviamente que a febre dos perfis fakes e dos avatares em sites de fanfics me engoliu.
Quando eu era a GabiTsukno, a coragem não me abandonava. Assim como quando entrei nos grupos de RPG de Texto e passei a criar personagens, a vida deles passou a ser a minha. Eu queria ser aquela persona criada para interagir com sabe-se lá os deuses quem do outro lado da tela.
Na Era da super informação e comunicação, já não tinha tanta paciência para viver conectada e online, tão pouco tempo – isso mesmo, a vida adulta tradicional me recrutou, a contragosto –, a necessidade de mostrar meu cotidiano e as dancinhas somaram forças para me afastar do que se tornou entretenimento hoje em dia.
Nesse bolo, obviamente, as pessoas passaram a consumir vlogs, que nada mais são do que alguém mostrando sua vida como ela é, enquanto o carisma do seu jeito de falar prende a audiência.
A vida de alguém, mesmo a mais fútil e simples, é melhor do que a nossa. Já parou para pensar por esse ângulo? Sobre como vivemos no automático, presos na monotonia do capitalismo exploratório, que precisamos assistir alguém sendo só ela mesma, nada mais, para nos sentirmos de alguma forma preenchidos.
A solidão da super comunicação é um assunto que nem todos estão preparados para discutir, menos ainda para aceitar a sua existência.
Suzu se prende a essa solidão sem notar as pessoas ao seu redor, que tentam se aproximar e ajudá-la, que a querem bem e que também sofrem por ela e pela perda dela. Ela prefere ser Belle, porque no mundo de U ela está livre dos traumas doloridos da adolescente que perdeu a mãe. Belle é famosa, pode voar, tem magia e canta maravilhosamente.
É magia da internet? Um pouco. Talvez o melhor esteja em perceber o poder que nós, do jeito que somos, temos em inspirar e cativar os outros, em como esse poder é necessário a nós mesmos, para seguir em frente e criar propósito.
Passei anos, porque já posso contar três – e ainda enfrento a mesma batalha – lutando contra mim com a escrita, contra os demônios que eu mesma criei e os criados pelos outros que abriguei na cabeça. Fui e sou ainda a minha maior carrasca e essa guerra é a mais difícil e medonha já enfrentada.
Engolimos verdades absolutas que, muitas vezes, é criada por terceiros, desde a nossa infância, apenas para tentar agradar, para se encaixar e ter uma espécie de aceitação que é, sendo sincera, inalcançável.
Belle prova o poder do amor, em seu mais lindo e completo significado, focado, acima de tudo, na confiança em si, na crença em si mesma para, então, ajudar os outros e seguir a vida.
Gosto de me munir dessas referências no entretenimento, isso me faz ter certeza de que a arte é quem salva vidas, sempre salvou e sempre salvará.
Beijos de Fogo.