A que pertenço?

Ela não assumiu sua vaga de criar fantasia na realidade difícil, ver alegria no simples, esquecer o amanhã, viver o presente intensamente e mais uma série de ações sábias que só cabe a elas. No lugar da risonha e divertida garotinha de cachinhos chocolate, restou a menina magoada, sofrida, ranzinza e cruel, que é insegura demais para dizer não e amargurada demais para encerrar os ciclos abusivos.

Ao que pertenço?

A que pertenço? Outra vez recorro ao papel para tentar entender o ir e vir dentro de mim, as línguas e dialetos que as vozes sabotadoras tentam proferir em uma fração de segundo.

Perpassa-me a sensação desamparada de abandono. Sinto-a com uma constante frequência desde o ano passado – ouso sugerir, nos últimos 3 anos. Traumas infantis explicam parte desse sentimento, entendo perfeitamente. São situações das quais não havia nome ou explicação quando eu era criança e só com a retomada dessas lembranças, na vida adulta, para nomear cada evento, é que a compreensão surge.

Mas sinto mais profundo do que esses dias de lamento diante da imaturidade dos meus pais em executarem essa tarefa árdua de serem pais. É profundo demais para se resumir a criança que fui e que busca até hoje um lar seguro.

A violência doméstica – verbal, psicológica e física – transforma alguém. Costumava me orgulhar da rebeldia existente dentro de mim. Esse furacão, que mais resulta de uma birra infantil pela falta de atenção, cessou. A adolescente dentro de mim finalmente findou, para a adulta assumir.

Todavia, a criança restou. Ela não assumiu sua vaga de criar fantasia na realidade difícil, ver alegria no simples, esquecer o amanhã, viver o presente intensamente e mais uma série de ações sábias que só cabe a elas. No lugar da risonha e divertida garotinha de cachinhos chocolate, restou a menina magoada, sofrida, ranzinza e cruel, que é insegura demais para dizer não e amargurada demais para encerrar os ciclos abusivos.

A disfuncionalidade parental se estende a níveis imensuráveis. De familiares tóxicos, aos quais a obrigação me carregou a convivência por anos infindáveis. Dos mesmos estarem envolvidos em uma das maiores perdas que enfrentei em toda a minha vida: a casa onde nasci e cresci.

Regina sempre será um nome que me arremeterá ao apartamento de azulejo verde-musgo, de frente para uma rua de amendoeiras a cinco minutos da praia, no qual habitei.

Odiava-o. A vizinhança egocêntrica, patriarcal, machista e racista. O status quo nitidamente ali seguido. O barulho; céus, como é possível, todos os dias sem exceção, haver reforma? Até hoje não suporto barulho de furadeira ou qualquer máquina similar.

Por anos abominei aquele lugar. As lembranças sofridas de dores incontáveis nas noites de desavenças parentais. Nos eventos paranormais nem um pouco agradáveis. Das brigas, das invasões de terceiros – familiares, claro – a se julgarem donos. As ameaças de despejo.

Por anos pensei que a justiça existia, que o direito de pertencimento encerraria a história. Mas quem tinha o papel passado estampou-nos que torraria o dinheiro do imóvel do jeito que queria, independente se ficaria na rua, tal como o verdadeiro dono nos colocou porta à fora em menos de um mês.

O dono. Papel passado. No meu nome.

Essas palavras ecoam dentro de mim como ameaças de que meu tempo está passando, de que qualquer lugar em que estou não tem segurança; logo alguém vai simplesmente exigir o direito do espaço e simplesmente estarei olhando para os lados sem saber o que fazer.

Como disse lá em cima, a criança magoada grita e chora, enquanto a adolescente dorme, exausta de ser a força motriz desse corpo. E a adulta pouco consegue discernir entre a dor e o dever. Obviamente, a segunda opção vira cobrança e a primeira jamais consegue ser calada.

Choro diante da tela a cada aula do cursinho para concurso, descrente de que essa vaga vai ser minha, pois aprendi que o merecimento não existe. Tão pouco sou sortuda na vida.

Choro por sentir a insegurança da falta de um documento que prove meu pedaço de terra, que me deixe segura quanto a nunca precisar pensar no despejo.

Que me passe a sensação de que ali podem haver as minhas regras. Sem pedir permissão, sem me esconder dentro de casa – janelas e portas fechadas – para não interagir ou precisar fingir um sorriso que não quero dar naquele dia.

Para apenas ser quem sou, apenas ser. Sem podar as explosões, as caras feias, os momentos de gritos alegres, a vontade de ligar a música alta ao máximo ou de aproveitar intimidades na hora que quiser.

Sai do logradouro de minha mãe para continuar com a sombra da autoridade materna sobre minha cabeça.

É medonho!

Enquanto isso, pertenço a que? Se eu não posso ter identidade, ou os objetos que envolvem o lugar no qual durmo e trabalho, ou as roupas que uso, ou as plantas que quero criar – se morrerem, acho que o problema deveria ser meu – e os bichos que desejo adotar.

Liberdade é uma busca constante, dessas sem compromisso consigo até. Sem cobranças sobre o entortar alheio ou se aquele jeito é melhor ou sabe-se lá o que mais.

Imaginei que a perda do Regina estivesse resolvida, mas a mesma insegurança que alimentei por anos lá morando, intensificou quando o teto e as lembranças dali foram roubadas.

Qual esperança alimento? Nenhuma. Justiça não existe e merecimento também não.

Sinto-me deslocada. Acho que é essa a palavra. Totalmente desconectada de tudo que me foi ensinado como certo e necessário, coisas como ter uma carreira tradicional, estudar e se formar na faculdade, se especializar ao máximo e fazer um concurso público. Para, então, poder gozar de uma casa própria, um transporte particular e os benefícios financeiros. Tudo para pertencer.

A que? A quem? Aonde?

O dilema sobre o teto em papel passado me atinge com mais força do que imaginei. Costumava bater no peito ao dizer que lar era onde estava, era pessoa, era acolhimento, mas desde o ano passado venho aprendido a desconfiar de todos que entendia como rede acolhedora. Sentir-me tão desoladamente sozinha que me rói as entranhas.

Plus: não tenho casa própria ou esperança que um dia vá conseguir.

Nesse mundo guiado por status e dinheiro, pergunto-me constantemente quem sou e ao que pertenço. Tento diversas formas de me preencher com crenças e rituais que parecem fazer sentido, mas são podados ou simplesmente perdem o uso ao longo do tempo, até no primeiro instante da expressão sobre executá-los.

Como deve ser se sentir totalmente livre em sua casa? Se sentir dono daquele conjunto de regras e rotina que você fez para você e segue por seu bel prazer, mesmo nos dias ruins? Eu acho que deve ser maravilhoso!

Por muitos anos enganei-me que sair do ninho era suficiente para pertencer. Era necessário para construir algo que fosse meu de fato. Mas a vida vem me arrancando, pedaço por pedaço, o que construí para mim. Vem estampando o quanto nada tenho e nem tão cedo vou conquistar.

É doído, sofrido, desesperador.

Muitas vezes me iludo crendo que as angústias sufocantes de minha alma é resultante do escasso poder de compra do brasileiro. Só por um acessório, um objeto qualquer, um item decorativo, uma peça de roupa. Então, ao não conseguir fechar um carrinho de compras em qualquer que seja a plataforma, sinto-me infeliz.

Aí me aponto errada: “só por causa dessas futilidades?! Absurdo! Observe mais o que tem e menos o que não tem!”.

Sermões acalorados gritam na minha cabeça para que o consumismo suma de mim. Que ele se cale e volte meus pensamentos para coisas importantes, que valem a pena se pensar.

Então, vamos a coisas importantes: inscrições para concurso, cursinho para estudo, curso preparatório, transporte público para entrega de currículo, publicar livros – esse é o que mais me dói em todos os aspectos. Todas essas etapas importantes precisam de “apoio” financeiro e eu tenho pouquíssimo.

Conclusão: tudo bem gastar dinheiro com o que o estipulado necessário e importante, mas caso não, melhor economizar para o útil.

E o que é útil mesmo?

Será que se eu não comer em um restaurante qualquer, uma vez no mês, eu vou conseguir economizar o suficiente para comprar um terreno ou uma casa própria? Será mesmo que é o merecimento do esforço que vai me levar a um emprego seguro? A uma vaga em concurso, ou seja lá o que for? Será que já não mereço, então? Tendo em vista quantos já tentei e o quanto invisto nas minhas qualificações.

No fim, o que é pertencer? Pertenço mesmo a essa jornada? Pertenço de verdade.

Se sim, por que não me sinto?

Todos os dias da minha vida é uma luta medonha sobre o que devo segurar nos meus braços com unhas e dentes para que pertença a mim. Para que eu possa ter identidade naquilo, simplesmente me sentir confortável ali.

Sou como um grupo andarilho de The Walking Dead, cujo medo primordial é achar outro que vá tomar as míseras latas de comida que restaram.

E o que restou para mim?

Ilusões de uma vida que nem foi eu mesma quem imaginei.

Amo cães. Amo conviver, educar, treinar, passear, estar na companhia. Crio cães desde muito nova, nem me lembro direito o quão. O último da história faleceu em 2018 e precisei de um período enorme de luto para que a vontade de ter outro canino surgisse.

No entanto, o momento pouco me propicia tal evento. Não posso. Nunca poderei. Jamais!

Julgamentos mil e leis impostas por outrem trazem a mesma prisão que um dia me vi no seio familiar qual cresci; talvez pior.

Não me é permitido ser quem sou: estressada demais, faz questão por coisas tolas, mal-humorada e a sorte de negatividade por eu não está disponível e permissiva.

Terapia atrás de terapia para entender a tocar o foda-se. A simplesmente não me importar com a reação alheia e viver por mim. Então, vem o julgamento do egoísmo, da culpa, e as alcunhas diversas que o fazem desde a mais tenra idade.

Então, penso no futuro, motivo minhas ações para as conquistas de liberdade que almejo alcançar. Dia após dia, esforço-me para conseguir, para chegar lá. Anulo-me, inclusive, para chegar lá.

Onde é lá? Que lá é esse que me massacra e adoece? Que só me causa dor e autodestruição. Autopunição e mais automutilação. Até onde meus pés conseguem suportar o flagelo da brasa desse caminho sufocante?

Tento pensar que suportarão, porque pertenço…

A que?

A quem?

Respostas inexistentes.

Enquanto isso, sigo sorrindo e confirmando os planos asneirados de terceiros sobre o que seria melhor para mim. Sobre como devo ou não seguir minha vida. Sobre uma resiliência quase inexistente.

A vida tradicional da mulher brasileira? Sou lésbica em um dos países que mais mata pessoas LGBTQIAPN+, uma medium criada no seio cristão fervoroso, uma mulher executando as funções que esperavam de mim e as que um homem deveria ocupar em um ambiente totalmente machista e patriarcal.

Me foi ensinado a ser dona do lar e da carreira, a cuidar dos outros ao redor e da casa, de mim só pela estética, a ser bem sucedida para provar algo, a desconfiar de quem deveria ser minha rede de apoio. E, acima de tudo, a esquecer a preciosidade genuína e única de quem sou para que a normatividade hétero nunca, jamais, seja prejudicada.

Lógico, eu não sei ser uma mulher lésbica casada, tão pouco convivo intimamente com exemplos; excluindo a internet. E tudo que não se sabe, deveria ser aprendido. Mas até nisso tentam me guiar com seus protocolos desatualizados de “Manual da Vida”. Nesse livro não há capítulos para lésbicas.

Então, me vem a pergunta outra vez: ao que pertenço? A quem? Que tipo de textural de realidade posso e quero me apegar?

Não à toa escrevo sobre mulheres que buscam seus lares, seja de forma física ou emocional. Almejam liberdade, mesmo que através da morte. O resto é adorno do meu gosto peculiar para fantasia. O cerne se resume a essa prisioneira dentro de mim, que não descobriu a barra frouxa da cela para, então, fugir.

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Categoria: Reflexões

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