Microconto | Lembranças Mortas

Microconto: Lembranças Mortas, por G. M. Rhaekyrion. (Imagem: Canva)

A vida de um Caçador de Recompensas pode ser rodeada de sangue, mas nem sempre empapo minhas mãos de vítimas humanas encomendadas. A maioria das pessoas costuma pensar que nós, caçadores de recompensas, vivemos em um mar sombrio e escondido. Totalmente alheios a vida como ela é de fato.

A verdade é que temos a nossa rotina, bem como qualquer mortal. Parte do trabalho é amolar as armas e ter os ouvidos atentos as fofocas da cidade, mas a maior parte do tempo passamos as horas cuidando das refeições do dia, garantindo a comida e lavando roupa.

Nessa noite de tayra estava tirando a pele de um gordo búfalo, limpando o interior do bicho e fazendo cortes precisos nas partes comestíveis. Bem é verdade que nos melamos de sangue, mas pode ser apenas da caça de um animal qualquer e hoje gostaria de não me importar com as fofocas alheias. Planejo beber até perder a sanidade e isso custa caro.

Depois que vendi o búfalo para o açougue mais próximo do centro da cidade, usei parte do lucro para pagar por roupas novas, que seriam feitas com a pele do mesmo bicho, e outra para me hospedar em um lugar descente, só para variar. Existe um limite para aturar o chão da floresta. Pela soma que tenho, consigo pernoitar sobre uma cama e tomar um banho merecido.

Foi assim que Milarve me recebeu, com uma boa estadia e uma noite tranquila, onde poderia procurar o bar mais próximo e, se desse sorte, consumir a maior quantidade de cerveja possível.

Já que estava no Sul do continente, preferi um banho frio. Dentro da banheira de pedra, cheirando a ervas florais de banho, começo a recordar de coisas que preferia enterrar. Mas sempre que lavava meus cabelos com esses aromas lembrava de onde vim.

Mergulho até o pescoço, vendo meus pés saírem da água e se esticarem sobre a borda oposta. Nenhuma dessas banheiras conseguia ser grandes o suficiente para um homem da minha altura. Olho meus dedos tortos, as cicatrizes, as tornozeleiras de couros que nunca saiam da perna esquerda. Penso em uma vida completamente diferente dessa. Penso no que me foi tirado e tento entender o que fiz para merecer tamanho castigo.

Olho meu braço esquerdo, a marca acinzentada partindo do punho, em cinco belos centímetros de manchas corrompidas, que pontuavam as consequências da minha ganância, da minha vaidade. Respiro fundo, fechando os olhos calmamente, tentando me livrar dessas lembranças e focar em pensamentos melhores.

Seria mais fácil se estivesse acompanhado, poderia me divertir de outro jeito. Rapidamente descubro que não estava disposto a isso.

Suspiro ruidoso, encostando a cabeça na borda fria, fechando os olhos.

É impressionante como as feições felinas de Pamela surgem atrás das órbitas quando estou perto demais da minha antiga casa, perto demais de Spenyn. Luto para tirar essa infeliz da cabeça, mas é nela que meu cérebro decide focar.

Todas as vezes começa por ela, depois segue até as tragédias que me levaram a vida que tenho hoje.
Decadente, matando para viver. Que coisa mais ridícula para alguém como eu.

— Um dia ainda acabo com isso do jeito certo. — me prometo pela enésima vez, tendo a certeza de ser incapaz. Não tinha a coragem necessária.

Deveria abraçar o oficio como parte de mim, parte da consequência dos meus atos e deixar de me lamuriar por asneiras. Mas é quase impossível. Um dia a juventude vai embora e de que jeito viverei? Pedindo? Não, nunca mais. Muito menos farei do meu corpo um lucro, essa é uma lembrança morta, a primeira que matei quando abandonei minha antiga casa.

E continuarei alimentando o Mar dos Lamentos? Talvez pudesse trocar as pessoas pelos animais e viver da venda de carnes exóticas, pele da boa. Automaticamente me reprimo. Nenhuma caçada é mais lucrativa que a oriunda de recompensas. Sou pago para sanar a vingança alheia, a pedra no sapato de alguém, um genro indesejado, uma nora ladra. Uma esposa falsa ou um sogro chato.

Não passo de um dedo podre no meio das confusões familiares dos outros. Não consegui sanar meus próprios problemas fraternos, então vou dando cabo dos alheios, até que a saudade me consuma ou que surja algo melhor. Tento me encarar, me perceber e só encontro um homem maltrapilho, que acredita ter achado a razão de viver ao usar a foice de cabo curto para aumentar a arrecadação da Ceifadora. Quanta mentira.

Novamente suspiro, existiria um momento de paz nessa existência e antes que me entregue ao pior desse sentimento ruim, um choro infantil me desperta dos Devaneios, enchendo o aposento, me salvando da loucura.

— Pensei que dormiria o dia inteiro. — comento sorrindo, sendo invadido por uma energia além da explicação lógica.

Só existia uma condição para a minha sanidade ainda se manter parcialmente íntegra e essa tinha olhos dourados como ouro líquido e os cabelos de um vermelho sangue genuíno.

Saio da banheira o mais depressa que posso, enxugo-me na toalha e a prendo na cintura antes de voltar ao quarto. Pego a trouxinha chorona com muito cuidado, a embalando em meus braços com a mesma delicadeza que uso para cortar a garganta das minhas vítimas. A diferença é que essa vida eu quero manter intacta.

— Papai chegou, não precisa mais chorar. — Sussurro baixinho e ela me encara atenta.
Mergulho na sua beleza gentil e pura, recordando as razões que me levaram a essa profissão tão pedida e tão marginalizada.


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Scroll to Top